“Lourdes Pintasilgo inspirou-me e motivou-me. Eu tinha 10 anos e muita pena de não poder votar”
Aos 44 anos, a eurodeputada do Bloco de Esquerda Marisa Matias candidata-se pela segunda vez à Presidência da República. Porque estamos a atravessar uma nova crise e quer contribuir para resolver os verdadeiros problemas dos portugueses. Ela que gosta de ir ao seu encontro, no terreno.© Ilustração de André Carrilho
Àuma da tarde, as esplanadas do Largo do Carmo começam a encher-se para o almoço. É ali que encontramos Marisa Matias para uma conversa que antecederá em algumas horas a apresentação da sua segunda candidatura presidencial. Um local carregado de simbolismo que a eurodeputada do Bloco de Esquerda escolheu para dizer que será a candidata contra o medo. Medo que há 46 anos o povo não sentiu quando encheu o largo para saudar Salgueiro Maia e os militares no derrube da ditadura. Ali mesmo, onde agora nos sentamos à mesa. Ali mesmo naquele largo que Marisa cresceu a imaginar enorme, mas que não sendo assim tão grande acolheu o sonho de liberdade de uma nação.
As raízes modestas, a família, a luta pela igualdade, os adversários na corrida a Belém, serão temas de uma entrevista em que Marisa aproveita para picar qualquer coisa antes de ir a correr para uma reunião do Bloco de Esquerda e voltar ao Largo do Carmo, acompanhada de profissionais de várias áreas, que estiveram na linha da frente na pandemia. Gente que quis homenagear.
Quando às cinco da tarde regressa ao Carmo, Marisa Matias caminha segura, sorridente. A écharpe vermelha que traz ao pescoço parece ainda mais garrida, talvez a puxar a cor do cravo que ostenta na mão.
“Sou socialista, laica e republicana”, dirá durante a apresentação, uma frase que tantas vezes se ouviu no masculino, da boca de Mário Soares. Horas antes, ali à mesa, foi precisamente pelos valores da República que começámos a nossa conversa.
A Marisa simboliza os valores do republicanismo: é mulher, nasceu numa família modesta, numa aldeia que não tinha nem água nem luz, mas isso não a impede de ser candidata à Presidência…
Eu e tantas pessoas da minha geração. Temos se calhar o conhecimento da vida, da importância do que foi o processo de democratização do país, da importância do estado social. Sinceramente, se tivesse vivido noutro tempo não poderia ter feito a trajetória que fiz. Na minha aldeia, Alcouce, no início não tinha escola, tinha de ir a pé para uma aldeia vizinha. A democracia não chegou a todo o país ao mesmo tempo. Passar a haver transportes públicos, centros de saúde, escola primária, permitiu que eu pudesse aceder aos diferentes níveis de educação sempre na escola pública – na aldeia, depois em Condeixa-a-Nova e em Coimbra, mas sempre ali à volta. Agora penso, por exemplo, no caso dos meus sobrinhos – já não há escola primária outra vez, já não há transportes públicos, já não há extensão de saúde…
Quantas pessoas vivem na aldeia?
Não vivem muitas, umas 80. A aldeia nunca foi muito grande, mas não ficou deserta. Mas foi naquele momento da década de 1980, da consolidação da democracia, que muitas pessoas como eu puderam ter acesso a um conjunto de coisas que não se tinha antes e que depois deixaram de se ter. Hoje, as pessoas têm alternativa, apesar de tudo…
Fale-me um pouco da sua aldeia… É verdade que se esquecia de cuidar das cabras, entretida que estava a ler?
Não me esqueci assim tantas vezes. Participávamos no trabalho em conjunto. Não havia água canalizada, não havia saneamento, portanto, tínhamos aquelas coisas básicas de ir buscar água todos os dias, de ajudar na agricultura…
“Acho que ainda sou a filha da Irene e do Agostinho.”
O que faziam os seus pais?
A minha mãe, durante alguns anos, tomava conta de crianças, noutros fazia limpezas em casa em Coimbra e noutro período esteve connosco em casa. O meu pai era guarda-florestal.
Foi a primeira licenciada na família…
Os meus irmãos também puderam estudar, mas eu licenciei-me primeiro, embora seja a do meio.
Quando lá vai à aldeia é a Marisa do Bloco ou a filha de…
Acho que ainda sou a filha da Irene e do Agostinho. Obviamente que, ao fim destes anos todos, é indissociável aquilo que eu sou daquilo que eu faço, mesmo para as pessoas de lá. Indissociável no sentido que toda a gente me conhece.
Volta muitas vezes à aldeia?
Não tantas como eu gostaria… neste ano praticamente vezes nenhumas por causa das circunstâncias que vivemos todos e por estar noutro país. O sítio onde passo mais tempo é em Bruxelas, mas antes da pandemia conseguia vir com alguma frequência.
Limpa a alma quando regressa às origens?
Completamente! Eu adapto-me a muitos sítios, mas casa, casa, é lá… Passem os anos que passarem… Vivi lá até aos 22 anos.
É em Alcouce que desperta para a política com um vizinho comunista…
Era Álvaro Febra, a quem chamavam o Álvaro Cunhal pelas razões óbvias. Adorava conversar com ele… Tinha sempre histórias espetaculares para contar da clandestinidade e chegou a estar em trabalho do partido na República Checa, era uma pessoa muito informada.
“A minha mãe teve muita influência na minha vida e na da minha irmã, por exemplo, em relação à igualdade, aos direitos das mulheres.”
Foi aí que definiu a sua ideologia?
Foi aí e foi em casa. Os meus pais nunca foram muito militantes, mas foram sempre de esquerda. A minha mãe teve muita influência na minha vida e na da minha irmã, por exemplo, em relação à igualdade, aos direitos das mulheres, porque ela não pôde fazer nada do que queria… Forçava-nos a estudar e a sair de casa, que é uma coisa de que os pais normalmente não gostam…
O local de apresentação da sua candidatura presidencial é muito simbólico.
Estamos num momento político em Portugal em que é preciso invocar os valores básicos da democracia.
Sente um frio na espinha quando imagina o que se passou aqui há 46 anos?
Já estive aqui muitas vezes, nomeadamente nos 40 anos do 25 de Abril… mas tenho muita inveja das pessoas que cá estiveram. E não foram só as que lutaram, mas as que se mobilizaram e fizeram da revolução um ato verdadeiro de cidadania e luta pelos direitos. Uma situação que podia ter sido complicada, mas não foi… e isso deve-se à forma como toda a gente saiu à rua em paz, a lutar pela sua liberdade. Gostava de ter vivido esse momento. Mas não tendo vivido esse momento, ele vive em nós, resta saber se não fica esquecido.
Nasce quase dos dois anos depois do 25 de Abril, vindo a beneficiar das mudanças trazidas pela Revolução…
A minha história é muito mais comum do que se pensa, não é uma exceção…
Mas a Marisa não tem vergonha de a contar.
Esse conceito eu não percebo. Acho que não há nenhuma forma de nos formarmos em geração espontânea, nós formamo-nos em contexto. Este é o meu, para o bem e para o mal. Não acho, contudo, que isso me dê mais legitimidade para defender, por exemplo, a luta contra a pobreza ou contra a interioridade, porque acho que as pessoas não têm de passar pelas situações para serem defensoras das coisas. Acredito que se pode ser profundamente antirracista sem nunca ter sofrido uma discriminação racista, da mesma forma que se pode lutar contra a pobreza e o isolamento e pela igualdade sem ter de se ter passado por isso.
Como é que a pandemia vai condicionar a campanha?
Não acredito na política sem contacto com as pessoas. E esse é um dos maiores desafios que estamos a enfrentar com a pandemia. Não há nada que substitua o contacto direto. Ao contrário de muita gente que odeia, eu gosto de campanhas. Temos todo o tempo do mundo quando estamos em campanha… É aqui que se toma o contacto real com os problemas que as pessoas estão a enfrentar. Gosto desse contacto. Se alguma coisa devemos fazer na política, é dar voz a quem não a tem.
A mulher mais votada em presidenciais
Em 2016, Marisa Matias candidatou-se pela primeira vez à Presidência da República, conseguindo 479 mil votos (10,1%). Passou a ser a mulher mais votada para as presidenciais em Portugal. Em 1986, naquelas que foram as eleições mais disputadas de sempre, Maria de Lourdes Pintasilgo alcançou, na primeira volta, 419 mil votos (7,4)%. Há cinco anos, houve outra mulher na corrida, no espectro socialista – Maria de Belém Roseira (4,24%). Para as presidenciais de 2021, já se perfilou outra voz feminina, a ex-eurodeputada do PS Ana Gomes. Na apresentação da sua candidatura, Marisa Matias elegeu um adversário: o atual Presidente, Marcelo Rebelo de Sousa. E nas entrelinhas falou para André Ventura, do Chega. Aos portugueses apresentou-se como ” socialista, laica e republicana”. Um piscar de olho ao eleitorado do PS?
Ao fim de cinco anos, volta a ser candidata às presidenciais. Porquê?
Foi uma decisão pessoal. Levou muito tempo, mas foi muito ponderada e é convicta porque estamos a viver outro momento de crise. E em todos os momentos de crise há sempre quem procure trazer o discurso das inevitabilidades ou então as distrações, só para não se falar daquilo que se tem de falar. Há cinco anos decidi candidatar-me para trazer um contributo de discussão dos problemas concretos, de soluções, para fazer uma discussão política séria. Estamos a viver uma crise de contornos muito diferentes, mas que mostram que precisamos de mudanças estruturais na sociedade, de discutir as soluções, e corremos o risco de nos perdermos nas distrações, nas mentiras. Para mim, a política não é um jogo nem nunca foi, não é um palco, é uma forma de podermos ajudar a encontrar soluções para os problemas. Na política portuguesa, há uma tentação muito grande para as distrações e para as mentiras.
A conjuntura ajuda…
Exatamente, mas pela conjuntura mundial também já aprendi que de cada vez que a esquerda se dedica a reagir àquilo que é a agenda dos populismos, em vez de responder aos problemas das pessoas e procurar soluções, perde.
“O que Maria de Lourdes Pintasilgo fez para a política nacional está lá em cima.”
Há cinco anos tornou-se a mulher mais votada em Portugal, com um resultado superior ao de Maria de Lourdes Pintasilgo.
O facto de ter sido a mulher mais votada só mostra como estamos atrasados em termos de igualdade na política em Portugal. Em tantos anos de democracia, houve apenas três mulheres candidatas. Devo dizer que das campanhas que segui com mais emoção na minha vida foi a de Maria de Lourdes Pintasilgo, em 1986. Eu tinha 10 anos e lembro-me perfeitamente. Ela inspirou-me, motivou-me e eu tinha muita pena de não poder votar. Não há nenhuma barreira percentual de votos que a ultrapasse, não é comparável. O que ela fez para a política nacional está lá em cima.
Que fasquia estabeleceu para 2021?
Candidato-me para ter o melhor resultado possível. Mas acho mesmo que devemos refletir como é que só tivemos três mulheres candidatas e como estabelecemos a fasquia mais alta nos 10% dos votos. Acho que isso diz muito deste país.
Nas próximas presidenciais volta a ter uma adversária mulher, muito carismática. Ana Gomes vai ser uma adversária de peso?
É uma adversária amiga. Respeito Ana Gomes, gosto muito dela e desejo-lhe uma campanha excelente. Temos muitas coisas em comum, temos também muitas coisas diferentes. E não estou a falar de postura, mas de questões mesmo de política. Mas acho que há espaço para as duas.
É uma mulher que desperta amores e ódios…
Eu estou do lado dos amores!
André Ventura chamou-lhe “cigana”, “histérica”… A si, “candidata da marijuana” e “madre Teresa de Calcutá dos comunistas”. O que pensa deste modo de fazer política?
Em relação a esse senhor acho que há muito pouco a dizer. Também não me esqueço de que ele já disse não sei quantas vezes que ia deixar a consultora e nunca deixou e continua a não ser um deputado exclusivo. A palavra dele tem este valor, que é zero. Dito isto, o contacto que tive, do ponto de vista político e profissional, com a trajetória do André Ventura foi quando integrei as comissões de inquérito do Parlamento Europeu [PE] que investigaram os offshores e todos os escândalos que saíram daí – integrei com muito empenho e muita honra e foi do mais útil que fizemos no PE. O meu único encontro com André Ventura foi nos documentos dessas comissões de inquérito, porque a empresa para a qual trabalhou há muito pouco tempo era uma das referidas sistematicamente, a Finpartner, e, portanto, o que vejo é alguém que se diz identificar com o português comum, mas que na realidade está ao lado dos interesses financeiros.
E temos Marcelo, o candidato que não é, mas é. E que, segundo as sondagens, poderá ter um resultado estrondoso.
Ainda não é candidato, mas toda a gente aguarda que seja. O mandato do Presidente, até agora, foi um mandato incomparável, tem dimensões muito boas. Não me esqueço da forma como contribuiu para se fazer cumprir a vontade democrática dos portugueses a seguir às eleições. Depois de tantas hesitações, contribuiu para um governo que representasse a maioria representada na Assembleia. Encontrámo-nos em várias lutas: na questão dos cuidadores informais, foi uma voz muito importante… Encontrámo-nos na luta para defender os sem-abrigo. Há várias dimensões positivas.
E negativas?
Temos divisões no que diz respeito aos eixos de resposta a uma crise como a que atravessamos. Se pensar em três eixos, como os recursos para a crise do setor financeiro, não estou de acordo, por exemplo, com a forma como o Presidente da República se juntou à Comissão Europeia e ao governo português na solução para o Novo Banco que continuamos a pagar – foi um agente ativo dessa solução. Se pensarmos na defesa dos serviços públicos, se pensarmos na crise pandémica e no SNS, que foi fundamental para estarmos na situação em que estamos, percebemos que o Presidente teve um papel importante para manter as PPP dentro da nova lei de bases da saúde – quando a pandemia chegou percebemos que foram os privados os primeiros a fugir e a fechar portas. Temos essa divergência. Se pensarmos noutro eixo fundamental, que é a questão laboral e as desigualdades laborais, percebeu-se que foram os precários os primeiros a pagar o preço da crise e não houve uma ação concreta. Tivemos momentos como o da Cristina Tavares que foi assediada como nunca tínhamos visto pela entidade patronal e fez uma greve muito corajosa, e o das trabalhadoras da Triumph, que não visitou. Foram momentos importantes da luta laboral e, para um Presidente que é tão presente, quando não é tão presente assim notam-se melhor as ausências.
“É um problema para a sociedade portuguesa que o PS não apresente nenhuma candidatura.”
O PS vai apoiar a recandidatura de Marcelo?
Não sei, nem é um problema meu. Acho que é um problema para a sociedade portuguesa que o PS não apresente nenhuma candidatura, mas as decisões internas são internas.
Ultimamente as presidenciais têm sido traumáticas para o PS.
O espaço político em democracia é plural e tem de estar representado em todas as eleições. Isso é uma força da democracia, não é uma fragilidade. Obviamente que não comento decisões internas.
O que podem trazer as mulheres candidatas à Presidência da República à vida das outras mulheres? Às que labutam diariamente com salários miseráveis, às vítimas de violência doméstica…
A luta pela igualdade é uma luta inesgotável. Há bocado falámos do tempo da minha mãe, das mulheres que não podiam estudar, que não podiam usar calças… mas não é pelo facto de estarmos em democracia que estamos em igualdade de circunstâncias.
Quando falamos em violência doméstica estamos a falar de desrespeito pelos direitos humanos.
É um desrespeito total e vimos essas mulheres que são silenciadas da pior forma e ainda mais difícil no contexto da pandemia, quando tiveram de ficar fechadas em casa com os agressores. A violência doméstica é um dos problemas mais escondidos da pandemia. O que posso trazer? Que todas as mulheres possam desempenhar o seu papel numa tentativa que ainda é impossível de igualdade. Ainda teremos de falar disto durante muito tempo.
Ainda assim dou por mim a dizer muitas vezes à minha filha que temos muita sorte de termos nascido nesta parte do globo…
Apesar de tudo temos, mas são problemas diferentes. Obviamente se olharmos para o mundo todo e para os índices de desigualdade, não estamos nos piores. Esta é uma questão de humanidade e enquanto continuar a haver mulheres discriminadas, seja onde for, é um ataque a todas as mulheres.
É casada?
Não, tenho um companheiro. Mas já fui.
De papel passado?
Sim…
Mas isso é um bocado burguês…
Não é nada! Foi no registo civil, numa altura em que ainda não havia uniões de facto. Não foram totalmente as questões românticas, embora estivesse muito apaixonada, mas mais as questões burocráticas que nos fizeram passar o papel.
É uma mulher de paixões?
Sim, mas muito duradouras…Toda a gente gosta de estabilidade, mas ninguém gosta de estabilidade podre. Gosto de estabilidade sempre acompanhada de mudança justa.
“Já me disseram que sou feia. Várias vezes. Mas exerço uma função que não é estética.”
Não tem filhos. Não sente a pressão social, toda a gente a perguntar?
Não, essa pressão podia vir da família, mas nunca a senti.
Há mulheres que são cruéis com as que não têm filhos. Ou olham-nas como coitadinhas se não podem ter ou como seres desprovidos de amor se não querem.
É verdade, mas nunca senti isso.
Ser mulher – muito bonita, aliás – traz-lhe vantagens ou desvantagens na política?
Já me disseram tudo e o seu contrário. Já me disseram que sou feia. Várias vezes. Mas exerço uma função que não é estética. Acho que honestamente ainda estamos naquela fase que só traz desvantagens. Mesmo comentários que são tidos muitas vezes como positivos ou valorizadores vêm envolvidos num discurso que é exatamente o contrário. Na política, nunca discutimos questões estéticas nos homens, ou de família. Ou quando têm filhos, a compatibilidade da vida familiar e política. Há sempre uma série de padrões de julgamento para além do trabalho que a mulher faz. Muitas vezes esse trabalho é o último a ser julgado. E é um bocadinho triste.
Já perdoou a Fernando Rosas por se ter referido às meninas do Bloco?
É impossível não perdoar ao Rosas, mas todas as meninas do Bloco, entre aspas, tiveram uma conversa séria com ele
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